Seminário apresenta os benefícios do uso medicinal da cannabis
O seminário internacional Cannabis medicinal: um olhar para o futuro, promovido pela Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), com apoio da Fiocruz, nos dias 9 e 10 de julho, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, reuniu cientistas, médicos e advogados que debateram o acesso, a pesquisa e a regulamentação do uso da cannabis para fins medicinais.
Entre os temas, o custo da guerra às drogas, os usos tradicionais e milenares da cannabis na medicina, os avanços obtidos por pesquisadores em diversos países e as boas notícias para os pacientes tratados com medicamentos à base da planta. Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que fez a palestra de abertura do evento, “a cannabis é o remédio do século XXI e significa praticamente uma farmacopeia inteira”, tantos são os seus benefícios no tratamento de diversas enfermidades. Ribeiro acrescentou que “ainda neste século veremos a cannabis ser a primeira escolha médica para muitas doenças”.
Em sua palestra, Sidarta Ribeiro citou diversas enfermidades tratáveis com cannabis medicinal, como autismo infantil, carcinoma, distonia, dor crônica, depressão, encefalopatia, epilepsia, esclerose, esquizofrenia, fibromialgia, paralisia cerebral, Parkinson, retardo mental e transtorno de desenvolvimento (Foto: CCS/Fiocruz)
Antes da palestra houve uma mesa de abertura, com a presença do coordenador de Relações Interinstitucionais da Fiocruz, Valcler Rangel, do diretor do Instituto de Agronomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Everaldo Zonta, e dos fundadores da Apepi, a advogada Margarete Brito e o designer Marcos Lins Langenbach. Margarete e Marcos fizeram um relato sobre a criação da Associação, que teve como inspiração a tentativa de ajudar a filha de ambos, Sofia, a controlar as convulsões que tinha por meio do uso da cannabis medicinal. Valcler Rangel observou que a cannabis é uma planta cujo uso medicinal é conhecido há milênios e que ampliar o acesso para a utilização em diversas enfermidades é uma questão de saúde pública. “É preciso construir políticas públicas baseadas em pesquisas científicas que, em todo o mundo, comprovam os benefícios da cannabis medicinal. Para isso é necessário mobilizar a sociedade, informando-a desses êxitos e combatendo preconceitos”. Ele também disse que a Fiocruz vai pôr recursos em pesquisas que mostrem os avanços e tratamentos possíveis.
Em seguida ocorreu a palestra do neurocientista Sidarta Ribeiro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), fque ez um histórico do uso terapêutico da cannabis. “Cerca de 1,5 mil anos antes de Cristo já se fazia uso medicinal da substância. O Papiro de Ebers, daquela época, mostra o uso contra inflamação, já que a cannabis contém potentes anti-inflamatórios. E há outras substâncias na cannabis que não produzem efeitos psicoativos e são terapêuticos, estimulando o crescimento de ossos e o uso como antiepilépticos, antiproliferativos e antibacterianos. A cannabis é uma farmacopeia, é uma planta que gera muitos usos diferentes de acordo com a combinação de substâncias”, explicou o pesquisador, que apresentou diversos outros exemplos, ao longo da História, do uso terapêutico da substância.
Segundo ele, há evidências do uso da cannabis, que começou a ser cultivada nas montanhas do Himalaia, do uso da planta contra o câncer em uma mulher siberiana que viveu há 2,5 mil anos. “Na cannabis existem cerca de 500 substâncias de interesse para a medicina. O impacto da cannabis na saúde humana só é comparável ao da penicilina, pela capacidade de combater bactérias e a eficácia na luta contra várias doenças”.
Até o final do século XIX era possível encontrar medicamentos feitos de cannabis em boticas e artigos científicos ainda da primeira metade do Oitocentos mostravam os efeitos positivos da cannabis medicinal. Somente entre as décadas de 1910 e 1930 que a planta passou a ser demonizada, com uma forte propaganda negativa. “São cem anos de propaganda contrária e, por outro lado, glorificação do álcool e do tabaco”, disse o neurocientista, que apresentou peças de propaganda dos anos 40 e 50 em que o tabaco era recomendado para a saúde de atletas e até de bebês. “O álcool é muito mais perigoso para as pessoas e a sociedade. Este debate foi interditado e passou décadas longe de qualquer racionalidade científica, o que impediu de termos avançado mais rapidamente, em benefício da saúde de milhões de pessoas.
Ribeiro lembrou que várias doenças tratáveis com cannabis. “Entre elas, autismo infantil, carcinoma, distonia, dor crônica, depressão, encefalopatia, epilepsia, esclerose, esquizofrenia, fibromialgia, paralisia cerebral, Parkinson, retardo mental e transtorno de desenvolvimento”. Ribeiro acrescentou que os benefícios da cannabis medicinal tem atingido um número cada vez maior de pessoas. “E inclusive daqueles que, por preconceito ou desconhecimento, eram contrários ao uso terapêutico e, ao notarem os bons resultados, em si próprios ou em parentes e amigos, mudaram de ideia. Há pessoas convertendo parentes e amigos para essa causa. A informação de qualidade contribui para isso”.
A cannabis medicinal já é uma realidade em diversos países, como Alemanha, Israel, Canadá, Argentina, Chile, Colômbia e Uruguai, entre outros. E nos Estados Unidos está legalizada em 36 estados. “A cannabis é remédio há milênios e todos os seres humanos possuem substâncias semelhantes às da planta em seus organismos, tendo em vista o nosso sistema endocanabinoide”.
De acordo com Ribeiro, a descoberta revolucionária se deu em 1965, quando o pesquisador israelense Rafael Mechoulam isolou o elemento Delta 9 Tetrahidrocanabinol. O THC, como é conhecida a molécula mais psicoativa da cannabis, atua como relaxante muscular e anti-inflamatório. Dentre os benefícios, produz efeito anticonvulsivo, anti-inflamatório, antidepressivo e anti-hipertensivo. Além de ser usado também como analgésico e no tratamento para aumentar o apetite. Segundo Ribeiro, “o THC tem representado uma revolução na geriatria, já que aumenta a produção de proteínas sinápticas e a velocidade neuronal”. O neurocientista comentou que experiências em laboratórios com ratos mais velhos tratados com THC ficaram tão espertos quanto camundongos mais jovens.
Ele também citou, no tratamento do câncer, a mitigação, por meio do uso da cannabis, dos efeitos adversos da oncoterapia. “E evidências recentes mostram uma boa sinergia entre o tratamento tradicional do câncer com canabinoides [substâncias extraídas da planta]. Para muitas dores crônicas, a cannabis também é a solução, já que os opiáceos servem mais para as dores agudas”. Ribeiro acrescentou que o canabidiol [um dos 80 canabinóides presentes na cannabis] tem demonstrado bons resultados no uso de problemas do sono. “Desprezar o uso medicinal da cannabis é um desrespeito aos nossos ancestrais, que há milhares de anos já a usavam”.
Ribeiro disse que as associações de pacientes estão conseguindo mudar a opinião e o preconceito de muitas pessoas que eram refratárias ao uso medicinal da cannabis. No entanto, ele lembra que os preços desses medicamentos ainda são muito altos e por isso proibitivos para a maior parte da população. “É urgente que esses valores sejam barateados e que os medicamentos à base de cannabis consigam chegar aos mais pobres, com fomento a pequenas empresas produtoras, no âmbito privado, e disponibilidade no sistema público de saúde, por meio de investimentos governamentais”.
Regate de saberes ancestrais
Um pequeno cortejo, ao som de chocalhos, acompanhou a chegada de Ailton Krenak ao auditório do MAM, para a palestra que abriu o segundo dia (10/7) do seminário. O líder indígena e ambientalista dividiria a mesa sobre o tema Resgate dos saberes ancestrais e plantas como o futuro da medicina com o jornalista Pedro Bial, que não pode participar, pois havia testado positivo para Covid dias antes. O neurocientista Sidarta Ribeiro, que fazia parte do cortejo e já havia conduzido a primeira palestra do evento no dia anterior, fez companhia a Krenak no lugar de Bial.
Para ambientalista Ailton Krenak, “não podemos discriminar uma planta por causa de valores morais e culturais, isso é um erro grave, só mostra que os humanos estão ficando cada vez mais burros” (Foto: CCS/Fiocruz)
Krenak, que teve duas vezes Covid-19, começou por aí sua fala, dizendo que em algumas aldeias, no pior momento da pandemia, “nossos parentes decidiram se refugiar nos lugares mais remotos da floresta, para negociar com o vírus, utilizando seus conhecimentos ancestrais e manejando a entidade das plantas”. Segundo ele, os pajés têm uma relação de profunda empatia, amor e reverência pela potência das plantas, “para curar qualquer coisa”. Em contraposição, para ele, a medicina ocidental “muitas vezes se mobiliza em torno de novas doenças para tirar a beleza de estar vivo”.
Ele considera que esse “reservatório de saberes ancestrais” prospera em um ambiente comunitário que, mesmo no século XXI, é transmitido de uma geração para outra. Krenak ponderou que entre os participantes do evento possivelmente estariam pesquisadores que passaram décadas testando determinadas substâncias. “Mas fizeram isso, na maioria das vezes, sozinhos. Agora imaginem se eles estivessem testando junto com centenas de pessoas, de manhã, à tarde e à noite, em todas as condições climáticas e geográficas, durante 500 anos, quanto saber seria acumulado”, questionou.
O ambientalista afirmou que o saber dos povos originários não é uma fabulação, mas uma experiência continuada que se diferencia da sociedade moderna, “porque só existe em colaboração, comunitariamente, uma forma de viver seriamente discriminada pelo mundo em que vivemos, que faz o elogio do indivíduo”. Ele argumentou que um pesquisador pode fazer o registro de uma patente, mas que “gostaria de saber quando vamos poder assinar uma patente comunitária, coletiva; não de uma indústria, porque se uma corporação pode se apropriar de um saber que foi construído ao longo de mais de mil anos, isso é um roubo!”.
Para Krenak, “a cannabis, assim como todas as plantas, é uma entidade e tem a sua individualidade, mas é estigmatizada numa cultura individualista como a que vivemos, onde a apropriação e a exclusividade se constituem em valor moral e cultural”. Ele ponderou que vivemos numa sociedade tão complexa que “não conseguimos mais consenso em quase nada, que separa o que é tido como cultura da natureza” e é nesse contexto que certas plantas são consideradas “malditas”, como a cannabis, outras são muito bem-vindas. E fez uma provocação bem-humorada, “já pensou se começássemos a difamar o trigo, se fizéssemos um longo trabalho, dois mil anos de desinformação e discriminação sobre o trigo, íamos começar a dizer: ih, aquele ali cultiva trigo, é capaz até de comer pão!”.
Ele refletiu sobre a tendência de ver a natureza como uma fonte de recursos medicinais, dizendo que “isso é fruto de um pensamento conservador, proprietário, que nos afasta da natureza”. É preciso, disse Krenak, uma abordagem “onde nenhum de nós reivindique o privilégio em relação a esse saber, esse conhecimento tem que ser universalizado, como o ar que respiramos”. E acrescentou que “os povos que vivem livres em comunidade, compartilham e têm acesso livre a essas plantas, não precisam de protocolo, nem se explicar com ninguém”. Mas aqueles perderam a liberdade de se constituir em comunidade, afirma, “sofrem todo tipo de censura, de controle e violência”.
Roda de capoeira que ocorreu após a primeira palestra do dia de abertura (Foto: CCS/Fiocruz)
Segundo Krenak, a cannabis é uma “entidade que precisa ser tratada com respeito, numa relação colaborativa entre humanos e não humanos, é preciso aceitar que para muitos tem um efeito curativo, possibilitando viver com menos dor e desconforto, para outros é uma busca pela transcendência, para outros estágios de consciência”. Ele explicou que “é na biosfera do planeta Terra que essa planta prospera junto com a gente, como seres vivos. Não podemos discriminar uma planta por causa de valores morais e culturais, isso é um erro grave, só mostra que os humanos estão ficando cada vez mais burros”. Ele aponta a necessidade de superar o preconceito construído em muitos anos, por ideias religiosas e de classe, “para isso é preciso um trabalho cultural persistente, para diminuir o estigma, difundir a informação, para trazer luz a essa discussão e não excluir pessoas que podem contribuir por medo de serem acusadas de estarem fazendo apologia do uso de drogas”.
Fonte: https://portal.fiocruz.br