Novo piso de enfermeiros pode resultar em 165 mil demissões
Lula afirmou que vai criar subsídio para Santas Casas, mas outras entidades privadas não têm fonte de receita para bancar nova regra
O novo piso salarial nacional da enfermagem tem potencial para provocar demissões de profissionais de saúde e o fechamento de centenas de hospitais privados. Muitos desses empreendimentos são de pequeno porte, estão no interior do país e terão dificuldades para bancar o salário mínimo para enfermeiros.
O Brasil tem 1,29 milhão de trabalhadores com vínculos ao trabalho de enfermagem. A imensa maioria está vinculada aos 4.466 hospitais privados. Um estudo preparado pela LCA Consultoria para a FBH (Federação Brasileira de Hospitais) indica que as entidades privadas de saúde teriam que demitir 164.966 pessoas para compensar o impacto que o piso salarial causaria. Isso equivale a 12,8% dos postos de trabalho na área. Do total, mais de 79.000 desligamentos ocorreriam em negócios de saúde privados e outros 85 mil, em entidades sem fins lucrativos. Leia a íntegra do estudo (PDF – 775 Kb).
Esse cenário é consequência de várias decisões do Congresso. Em 2022, foi aprovada a lei 14.434, que fixou em R$ 4.750 por mês o piso salarial para enfermeiros. O então presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou o projeto. O Legislativo chegou a aprovar também duas emendas constitucionais relacionadas ao tema (a emenda 124 e emenda 127) para garantir a implantação do salário mínimo para enfermeiros.
A adoção do novo valor de R$ 4.750, entretanto, foi barrada por uma decisão do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, num processo movido pela CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços). Leia a íntegra (258 KB). O plenário do STF validou a decisão de Barroso em setembro de 2022. O ministro solicitou informações de governos e entidades sobre a viabilidade do financiamento. Agora, o processo aguarda nova decisão de Barroso após análise dos dados que vai receber.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tratou do assunto nesta semana. Sem explicar a fonte da informação, disse na 4ª feira (22.mar.2023) que os hospitais privados têm condições de bancar o novo piso salarial dos enfermeiros: “O que eu quero dizer é que primeiro as redes hospitalares privadas podem pagar. Quem é que tem dificuldade de pagar? As Santas Casas. A gente vai criar um subsídio para financiar o pagamento ou uma parte do pagamento para as Santas Casas”.
Lula afirmou também ter ordenado ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, que converse com o ministro Barroso para que o STF libere a implantação do piso nacional da enfermagem. O governo se comprometerá a ajudar apenas as entidades de saúde filantrópicas.
Nas suas declarações, o presidente não considerou de maneira completa o impacto real que pode ter o piso de R$ 4.750 para os enfermeiros.
A maioria dos hospitais privados é composta por pequenos e médios estabelecimentos, sobretudo no Norte e Nordeste. Esses empreendimentos atendem ao SUS (Sistema Único de Saúde) e clínicas de diálise. O impacto esperado nos hospitais privados é de um aumento de 56% nos custos com salários das categorias contempladas pela nova regra (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e parteiras).
No setor público é esperado um aumento de 20% (R$ 3,8 bilhões por ano), de acordo com levantamento da LCA Consultoria.
O estudo indica que o 1,29 milhão de vínculos de enfermagem têm uma grande disparidade quando se trata da distribuição geográfica. A região Sudeste lidera, com 654 mil profissionais. A região Norte é a menos assistida, com 83.000. O reajuste pelo piso afetará 887,5 mil vínculos –ou seja, 69% do total– que hoje se encontram abaixo do piso.
O impacto maior, no entanto, será sentido na região Nordeste (onde estão os Estados com menor PIB per capita), que concentra 261 mil trabalhadores e tem, em média, os mais baixos salários do país. Nessa região, 84% dos vínculos têm remuneração abaixo do piso –nos Estados do Maranhão e de Pernambuco, 90% dos profissionais estão nessa situação.
O salário médio de enfermeiros no Nordeste é de R$ 4.717; o de técnicos de enfermagem, R$ 2.266; e os de auxiliares, R$ 2.239. Ou seja, todos abaixo do novo piso nacional estabelecido pela nova regra.
O presidente da Federação Brasileira de Hospitais, Adelvânio Francisco Morato, diz ter dúvidas também sobre definição de como o piso será aplicado em relação ao total de horas trabalhadas –o piso é definido para 44 horas semanais, seguindo a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
HOSPITAIS E LEITOS
Outro levantamento da Federação Brasileira de Hospitais com a Confederação Nacional de Saúde mostra que os 4.466 hospitais privados do Brasil em 2022 estavam concentrados principalmente na região Sudeste (1.837), seguida pelas regiões Nordeste (1.007) e Sul (858). Na maioria, os hospitais privados são de pequeno porte –com até 50 leitos (59%); se considerados aqueles com fins lucrativos, a proporção é maior: 73%. Já entre os sem fins lucrativos, a concentração é maior entre os de porte médio –de 51 a 150 leitos (46%).
Leia a íntegra do estudo da FBH com a CNSaúde (PDF – 9,7 Mb).
A maioria (67%) dos leitos em hospitais privados se encontra fora das capitais brasileiras, diz o levantamento, embora nos hospitais com fins lucrativos a concentração seja menos acentuada (55% no interior e 45% em capitais).
Ao todo, o país terminou 2022 com 263.793 leitos em hospitais privados, a maior parte distribuída na região Sudeste (120.668). Houve no ano passado uma perda de 31.670 leitos em relação a 2010.
Além disso, mais de 90% dos leitos de hospitais privados sem fins lucrativos estão em estabelecimentos que atendem pacientes do SUS (94%).
DIÁLISE E ILPI
Outros setores que devem sentir o impacto do piso da enfermagem são as clínicas de diálise e as ILPI (Instituições de Longa Permanência para Idosos). A diálise é um procedimento clínico usado para pacientes que têm deficiência renal. De acordo com um levantamento do Sebrae, há no Brasil hoje pouco mais de 5.400 clínicas de cuidados para idosos, que empregam cerca de 100.000 profissionais de saúde.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, em 2019, havia cerca de 1,6 milhão de pessoas com 60 anos ou mais de idade vivendo nesses estabelecimentos.
No setor de clínicas de diálise, aproximadamente 2 terços dos mais de 1.300 estabelecimentos que realizam o procedimento são geridos pela iniciativa privada –e atendem cerca de 110 mil pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde), de acordo com a ABCDT (Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante). Segundo dados do Ministério da Saúde, clínicas de diálise com fins lucrativos realizaram no ano passado 68,74% dos procedimentos em pacientes do SUS, enquanto outros 24,79% foram feitos por clínicas sem fins lucrativos.
Um pleito do setor, segundo a associação, é o reajuste da tabela do SUS para remunerar o serviço. Com a possibilidade de terem de arcar com os custos elevados de cobrir o novo piso salarial da enfermagem, crescem os riscos não só de muitas dessas clínicas demitirem profissionais como mesmo de fecharem.
SOLUÇÃO ESTRUTURAL
Segundo parecer dos economistas José Roberto Rodrigues Afonso, Geraldo Biasoto Jr e Arthur Welle, as alternativas para financiar a implementação do piso salarial estão longe de apontar uma saída que impeça uma grave crise de gestão e emprego em diversos segmentos do setor saúde.
“Usar o FPM [Fundo de Participação dos Municípios] é o maior exemplo disso, dado que a rede hospitalar não está nos pequenos municípios, justamente os que são mais beneficiados pelo FPM, em termos de transferência per capita”, afirmam Afonso, Biasoto e Welle. Isso porque muitos dos municípios que serão os maiores beneficiários do FPM adicional sequer contratam enfermeiros e técnicos em enfermagem.
“As medidas compensatórias envolvem tantas questões regionais e especificidades do setor saúde e do SUS que não há dúvida de que as respostas até aqui entabuladas parecem fazer o problema crescer ainda mais”, explicam os economistas. Segundo eles, a solução teria de ter caráter estrutural, que diferenciasse atividades intensivas em mão-de-obra e, ainda mais quando dotada de alto índice de formalização (caso de hospitais e clínicas).
ENTENDA O CASO
A emenda constitucional 127 (eis a íntegra – 93 KB), de agosto de 2022, estabeleceu as fontes de recursos para a Lei 14.434, que criou um piso de R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos em enfermagem e R$ 2.375 para os auxiliares de enfermagem e parteiras.
Em 4 setembro de 2022, porém, o ministro Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu a aplicação do piso de enfermagem sob riscos de impactos financeiros nos cofres públicos, demissões de funcionários e possível piora na qualidade do serviço prestado. Leia a íntegra da decisão liminar (258 KB). A decisão foi referendada posteriormente pelos demais ministros no plenário virtual da Corte.
O Congresso aprovou, em 20 de dezembro de 2022, a PEC (proposta de emenda à Constituição) que, em tese, viabiliza o pagamento do piso apenas em hospitais controlados pelo poder público. O texto direciona recursos do superavit financeiro de fundos públicos e do Fundo Social para financiar o piso de enfermagem no setor estatal, nas entidades filantrópicas e de prestadores de serviços, com um mínimo de 60% de atendimentos para pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde).
Associações de hospitais e prefeituras argumentam, entretanto, que não há recursos para bancar o piso salarial, o que levaria a demissões e fechamentos de hospitais.
Ao todo, a aplicação da lei 14.434 de 2022 pode causar um impacto que varia de R$ 16,3 bilhões a R$ 23,8 bilhões por ano, representando uma fatia de 11% até 16% do orçamento do Ministério da Saúde (R$ 146,4 bilhões) reservado para 2023.
Fonte: https://www.poder360.com.br