Medicina a distância amplia o atendimento e já é irreversível
Pandemia mostrou que a modalidade veio para ficar, mas requer regulamentação e precisa ser profissionalizada
O modelo de consulta presencial já se mostrou falido e inviável para atender a alta procura. É preciso implementar um novo conceito para desafogar esse processo e melhorar a qualidade do atendimento em um país com as dimensões continentais do Brasil. Para o autor desse diagnóstico, Chao Lung Wen, o conceito precisa ser profissionalizado, mas é irreversível.
“A telemedicina se mostrou o melhor Equipamento de Proteção Individual (EPI) digital existente”, afirma Wen, chefe da disciplina na Medicina da USP. “É uma forma de proteção sem perder a possibilidade de atendimento, médico e paciente podem ser da população de risco.”
Mas, apesar de ser realidade no Brasil há pelo menos 20 anos, a medicina a distância ainda enfrenta problemas de aceitação, inclusive por parte da classe médica. Com o início da pandemia, a necessidade de expandir o atendimento falou mais alto e ela foi regulamentada —mas apenas temporariamente.
A lei 13.989, aprovada em abril, autoriza as consultas mediadas por tecnologias e a emissão de receitas médicas digitais, desde que tragam a assinatura eletrônica do profissional. Este, por sua vez, é obrigado a seguir os padrões normativos e éticos do atendimento presencial e informar as limitações da modalidade ao paciente. Ao fim da pandemia, caberá ao Conselho Federal de Medicina (CFM) a regulamentação definitiva.
Há muito a ser discutido, concordaram os participantes da mesa no 7º Fórum A Saúde do Brasil, realizado pela Folha na quarta-feira (26).
A necessidade de formar profissionais capacitados para atuar de forma responsável é uma delas, diz Alexandra Monteiro, coordenadora do mestrado em telemedicina e telessaúde da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Ainda não temos massa crítica. Embora a lei tenha autorizado, o que se percebeu nos hospitais é que existe uma certa dificuldade do entendimento de como praticá-la.”
Monteiro também citou como entrave a falta de uma legislação unificada, sem divergências entre as decisões do CFM e as medidas dos conselhos regionais. É preciso ainda zelar pela compatibilidade de sistemas em diferentes esferas (municipal, estadual e federal) e garantir as premissas obrigatórias de sigilo e confidencialidade, previstas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Tereza Veloso, diretora-técnica e de relacionamento com prestadores de Saúde e Odonto da SulAmérica, relatou que o índice de satisfação dos pacientes da empresa atendidos em teleconsultas passa dos 90%. Em fevereiro, houve, em média, 500 desses atendimentos. Com a pandemia, o número começou a crescer, chegando a 70 mil em julho.
Veloso acredita que toda especialidade médica tem condição de atuar por telemedicina e que as limitações impostas pela distância podem ser minimizadas pelo resgate da capacidade de fazer análise médica, conversar com o paciente e ensinar técnicas para auxiliá-lo no autoexame.
No campo da ginecologia e obstetrícia, as restrições são amplas, porque a saúde da mulher exige tocar no paciente. Vânia Martins, obstetra que trabalha nas redes pública e privada de Londres, ressalta que há grande risco de diagnóstico errado, principalmente para grávidas, mas também em procedimentos considerados mais simples. Prescrição de anticoncepcionais, por exemplo, pode exigir medir a pressão e confrontar com o histórico de trombose na família.
Residente na Inglaterra há dez anos, ela conta que os clínicos gerais do sistema público britânico têm dado preferência a consultas por ligação sem vídeo, o que tem levado pacientes a migrar para consultas particulares, que atendem presencialmente.
A médica diz que a telemedicina no Reino Unido, cujo sistema público de saúde é considerado modelo em todo o mundo, chega aos exames preventivos. Os médicos enviam o kit para a casa do paciente, que é instruído a realizar a coleta de secreções com cotonete e recolher amostras de sangue para o laboratório.
Veloso afirmou que a remuneração dos profissionais de telemedicina é cerca de 10% mais baixa, porque seus custos não envolvem a manutenção de de um consultório para atendimento. “Estamos em processo de aprendizado. Ainda vamos ter muita discussão sobre esse tópico.”
Wen, da USP, ressalvou que a remuneração deveria ser equivalente, porque o fundamento da teleconsulta é o mesmo do atendimento. “Não se paga o médico pela videochamada, mas pela responsabilidade profissional que ele assume com o paciente.”
Filas ou esperas de até seis meses por uma consulta, problemas detestados pelos pacientes, podem ser amenizados com a telemedicina, diz o professor da USP.
A história da telemedicina no Brasil começou em 1985, quando a USP fundou a disciplina de informática médica da Faculdade de Medicina. A partir de 2000, surgiram tecnologias para auxiliar em teleconferências e teleducação na área médica.
Em 2002, o CFM publicou uma resolução que definia e autorizava a prestação de serviços a distância.
“A gente já trabalhava com teleinterconsulta (na qual médicos trocam informações e opiniões para auxiliar no diagnóstico) e telediagnóstico (quando recomendam procedimentos e acompanham o sintomas). A pandemia trouxe a consulta direta entre médico e paciente”, relatou Alexandra Monteiro, da Uerj.
Para assegurar a modalidade como ato médico, os debatedores enfatizaram a necessidade de promover uma cultura sobre o uso correto da telemedicina junto à população, desmistificando questões controversas.
Para eles, apesar da necessidade de mais discussões sobre o assunto e da regulamentação definitiva, após o contato emergencial da telemedicina durante a pandemia, ela se tornou irreversível no cenário de saúde do país.
“Ela veio para ficar, veio para expandir o acesso e possibilitar que a gente consiga oferecer medicina de qualidade a locais distantes, aonde a gente não conseguia chegar”, disse Tereza Veloso.
O fórum contou com patrocínio da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), da Rede D’Or e da seguradora SulAmérica. A mediação foi feita pela jornalista Cláudia Collucci.
Telemedicina no Brasil
19.Mar.2020
Autorizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)
Mar.2020
Regulamentada por portaria do Ministério da Saúde
15.Abr.2020
Aprovada no Congresso com a Lei 13.989
23.Abr.2020
É aprovada a receita digital. CFM, Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e Conselho Federal de Farmácia lançam ferramenta para médicos emitirem atestados e receitas médicas online
Validade
Durante a pandemia de Covid-19; depois, cabe ao CFM regulamentar a prática
Âmbito
SUS, saúde suplementar e privada
Princípio
Geral: a telemedicina deve seguir os padrões normativos e éticos da medicina presencial
Regras: a telemedicina pode ser exercida como teleorientação, com recomendações sobre procedimentos e o acompanhamento de sintomas, e teleinterconsulta, que permite aos médicos trocarem informações e opiniões que auxiliam no diagnóstico
Todas as receitas devem ter assinatura eletrônica ou digitalizada do profissional de saúde