O que explica aumento de mortalidade por infarto entre mulheres jovens brasileiras
Números de mulheres brasileiras de 18 a 49 anos vítimas de infarto aumentaram na última década.
A mortalidade por infarto entre mulheres jovens no Brasil está em crescimento — e menos da metade delas recebe o tratamento adequado para prevenir ou tratar esse problema.
Esses são dois dos principais alertas de um recente posicionamento sobre a saúde do coração feminino lançado pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
A mortalidade por infarto entre mulheres jovens no Brasil está em crescimento — e menos da metade delas recebe o tratamento adequado para prevenir ou tratar esse problema.
Esses são dois dos principais alertas de um recente posicionamento sobre a saúde do coração feminino lançado pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
A entidade chama a atenção para todas as falhas na cadeia de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento do ataque cardíaco — e de outras doenças agudas que afetam o sistema cardiovascular — entre o público feminino.
Na cardiologia, as diferenças entre homens e mulheres “vão além das questões cromossômicas” e envolvem “os valores sociais, as percepções e os comportamentos”, que “moldam padrões e criam diferentes papeis na sociedade”, aponta o documento.
Essas questões ganham mais importância quando lembramos que as doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no Brasil, independentemente do sexo.
Mas o que está por trás dessa quase negligência do coração feminino? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que não existe um único fator que explica o fenômeno — e há toda uma sucessão de falhas por trás desse cenário.
A seguir, confira o aumento da mortalidade nesse público em comparação às demais faixas etárias e entenda o que saúde mental e sintomas “desprezados” têm a ver com o problema.
Mulheres mais jovens sob risco
O infarto geralmente acontece quando há o entupimento das artérias coronárias, os vasos que levam sangue rico em oxigênio e nutrientes para o coração funcionar direito.
Essa crise cardíaca aguda — e potencialmente mortal — costuma ser o estopim de uma série de elementos que se acumulam por anos ou décadas, como doenças crônicas (obesidade, hipertensão, colesterol alto, diabetes…), comportamentos e mudanças de estilo de vida (consumo de álcool, tabagismo, sedentarismo, sono de má qualidade…) ou características individuais (idade, sexo, histórico familiar…).
Tradicionalmente, o ataque cardíaco sempre foi vinculado à figura do homem com mais de 45 ou 50 anos que carrega um ou mais fatores de risco da lista detalhada no parágrafo anterior. E, segundo essa linha de raciocínio, o risco para as mulheres só aumentava no pós-menopausa — quando elas perdem a proteção cardiovascular conferida por alguns hormônios, como o estrogênio e a progesterona.
Mas a realidade é bem mais complexa: o posicionamento da SBC revela que o percentual da taxa de mortalidade por infarto no Brasil vem caindo de forma geral entre homens e mulheres de 1990 para 2019.
Porém, quando são analisados os números específicos de mulheres mais jovens, que estariam supostamente mais protegidas pelos fatores hormonais, mortalidade por doenças cardíacas até aumentou nas últimas décadas.
A taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares agudas subiu 7,6% entre mulheres de 15 a 49 anos entre 1990 e 2019.
Nos outros grupos (mulheres mais velhas e homens de todas as idades), essas taxas estão em queda ou sofreram um crescimento menor em comparação às brasileiras pré-menopausa.
A variação foi menor entre aquelas de 50 a 69 anos (+5,4%) e caiu entre as que já passaram dos 70 anos (-18,4%). Entre os homens, a variação da mortalidade também foi inferior nos três grupos analisados: de 15 a 49 anos (+5,8%), 50 a 69 anos (+1,6%) e 70 anos ou mais (-18,2%).
“Ainda não temos evidências suficientes para explicar definitivamente e em detalhes porque isso está acontecendo e o que está por trás dessa letalidade maior nesse grupo”, admite o cardiologista Antonio Mansur, diretor do Serviço de Prevenção, Cardiopatia na Mulher e Reabilitação Cardiovascular do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo.
Mas o documento da SBC apresenta algumas pistas que ajudam a entender esse cenário — como você confere a seguir.
Fatores de risco menos óbvios
Para começar, o posicionamento destaca que “as mulheres apresentam com maior frequência fatores de risco cardiovascular não tradicionais, como estresse mental e depressão, e sofrem as consequências das desvantagens sociais devido à raça, etnicidade e renda”.
Ou seja: além daqueles gatilhos clássicos do infarto (pressão alta, diabetes, sedentarismo, excesso de peso…), o público feminino ainda é mais afetado por problemas relacionados à saúde mental.
As questões psicológicas, por sua vez, vão representar um fardo a mais para um coração que já está sobrecarregado.
O impacto do estresse e da saúde mental no coração da mulher foi medido em vários estudos publicados ao longo dos últimos anos.
Um deles, feito na Universidade Emory, nos Estados Unidos, mostrou que a taxa de ataques cardíacos relacionados ao estresse era o dobro no público feminino em comparação com o masculino.
Entre pacientes que se recuperam de um infarto, a diferença no fardo mental também é marcante entre os sexos. De acordo com uma pesquisa da Universidade Yale, também nos EUA, a percepção de estresse é maior entre as mulheres mais jovens durante os doze meses que sucedem o evento cardiovascular.
Em linhas gerais, a saúde mental das mulheres é mais afetada que a dos homens por questões hormonais, de violência de gênero e traumas, segundo uma revisão publicada no The Lancet Psychiatry.
“Existe uma tendência na sociedade e na medicina de não se valorizar muito os aspectos da saúde mental. A mulher é vista como nervosa, como se não soubesse se portar ou reagir”, comenta a cardiologista Ieda Jatene, do Grupo de Estudo de Doenças Cardiovasculares em Mulheres do HCor, em São Paulo.
“Muitas vezes, as queixas emocionais não são encaradas com a mesma seriedade de incômodos físicos”, lamenta a médica.
Que fique claro: estresse, ansiedade, depressão e outros problemas psicológicos acometem homens e mulheres. Em ambos os sexos, se essas doenças não forem diagnosticadas e tratadas adequadamente, elas podem resultar em ataque cardíaco.
“Porém, o público feminino tende a sofrer mais com a sobrecarga relacionada à dupla ou à tripla jornada diária”, acrescenta Jatene, referindo-se à incumbência de ter uma profissão, cuidar da casa e dar atenção à família que recai com maior frequência sobre elas.
Além da saúde mental, a lista de fatores de risco cardiovasculares não tradicionais que acometem as mulheres inclui também o parto prematuro, a doença hipertensiva da gestação, o diabetes gestacional, as doenças autoimunes (como lúpus e artrite reumatoide, mais frequentes no público feminino) e os tratamentos para doenças como o câncer de mama.
Sintomas desprezados
Após anos de sobrecarga, as artérias do coração entopem e o músculo entra em pane. Falamos aqui do infarto, um evento que costuma apresentar alguns sintomas importantes e bem conhecidos — o mais famoso deles é a dor no peito que irradia para o braço esquerdo.
Mas aqui, mais uma vez, as mulheres saem no prejuízo. Nelas, nem sempre o ataque cardíaco se manifesta dessa forma.
Mansur, que também é professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, calcula que a dor no peito aparece em 90 a 95% dos homens com infarto. Enquanto isso, esse sintoma acomete de 75 a 80% das mulheres na mesma condição.
“Ou seja: ela ainda é o sinal comum e mais importante em ambos os sexos”, constata ele.
As mulheres vítimas desse problema, porém, podem sentir mais frequentemente outros incômodos diferentes — e, em razão disso, nem suspeitarem que estão sob risco.
Muitas vezes, nem mesmo os profissionais da saúde que atuam em ambulatórios e serviços de emergência conhecem esses sintomas atípicos do infarto, o que atrasa o diagnóstico e o tratamento delas.
“Muitas apresentam queixas como cansaço extremo, um desconforto no peito que não tem uma característica de aperto, falta de ar e disparos nas batidas do coração”, descreve Jatene.
“Todas essas manifestações devem sempre ser encaradas como sinais de alerta para uma doença cardiovascular”, complementa ela.
Além das pistas de infarto citadas pela médica, os manuais de cardiologia incluem também mal-estar súbito, sensação de desmaio, dificuldades para manter a respiração, fraqueza intensa, tontura, suor frio, dor no abdômen ou nas costas, palidez, náuseas, vômitos e dificuldades para dormir.
Diante deles, vale ir até um serviço de emergência com a maior rapidez possível.
Tratamento inadequado
Chegamos, enfim, à terceira barreira da lista: segundo o posicionamento da SBC, “menos de 50% das pacientes [com doenças cardíacas] são submetidas ao tratamento medicamentoso adequado”.
Em outras palavras, mesmo quando superam as outras duas dificuldades, fazem exames de rotina ou suspeitam de algo mais grave e recebem o diagnóstico correto, mais da metade das pacientes não tem acesso aos remédios ou aos procedimentos mais indicados para o caso delas.
Segundo os médicos ouvidos pela BBC News Brasil e o próprio documento da SBC, existem vários fatores que explicam esse menor acesso aos tratamentos contra as doenças cardiovasculares.
O primeiro deles tem a ver justamente com o fato de os profissionais de saúde suspeitarem menos desses problemas quando a paciente é do sexo feminino — com isso, elas não recebem o diagnóstico adequado, que permitiria realizar a melhor terapia no tempo adequado.
Os especialistas também observam que, no geral, as mulheres têm menos acesso a exames de rotina do coração, que permitiriam flagrar aqueles fatores de risco por trás de um infarto — como diabetes, colesterol alto e hipertensão arterial — e poderiam ser controlados por meio de medicações. Esses problemas ficam, então, escondidos por décadas, até que desembocam numa crise aguda das coronárias.
O posicionamento da SBC ainda chama a atenção para os “determinantes sociais da saúde”, como abuso sexual e violência, privação socioeconômica e baixa escolaridade. A entidade aponta que todos eles são “potencializadores de doenças cardiovasculares” nas mulheres — e é importante levar em consideração todos esses pontos durante a consulta para ampliar o acesso aos tratamentos mais efetivos para elas.
“Infelizmente, essa é a realidade. O tratamento do infarto nas mulheres costuma ser inadequado e tardio”, classifica Mansur.
“Elas são menos submetidas, por exemplo, à angioplastia e à colocação de stent”, diz o médico.
Esses nomes citados pelo cardiologista fazem alusão aos métodos cirúrgicos minimamente invasivos que desentopem as artérias coronárias e instalam pequenos dispositivos (os stents) que garantem a passagem de sangue pela região afetada.
Mansur acrescenta que, além dos procedimentos, as mulheres também costumam receber menos prescrições de remédios para controlar os fatores de risco tradicionais, como hipertensão e colesterol alto — que, como vimos anteriormente, são gatilhos para um infarto.
“As mulheres também são menos representadas em estudos clínicos de cardiologia. O número de voluntárias nas pesquisas é sempre muito menor”, aponta Jatene.
“Até há pouco tempo, acreditava-se que doença cardiovascular era coisa de homem e a mulher só apresentaria esses problemas depois que perdesse a proteção hormonal no pós-menopausa. Mas sabemos hoje em dia que eles podem aparecer de forma muito mais precoce”, reforça ela.
Para completar, a recuperação pós-infarto também é mais complicada entre o público feminino. Segundo um estudo publicado em maio no Jornal da Academia Americana de Cardiologia, mulheres são 1,65 vez mais propensas a precisar de uma nova internação nos primeiros 12 meses em comparação com os homens.
Elas também sofrem 1,46 vez mais complicações relacionadas ao ataque cardíaco e têm um risco 2,2 vezes maior de morrer nessa janela de um ano após o evento inicial.
Como mudar isso
Para Jatene, a melhora desse cenário passa necessariamente por uma palavra: educação.
Na visão da médica, todo mundo deve conhecer melhor as formas de prevenção dos fatores de risco cardiovasculares e os cuidados básicos diante dos sinais de um infarto.
Do lado dos profissionais de saúde, ela também aponta para a necessidade de uma melhoria no acolhimento das pacientes.
“Fundamentalmente, precisamos valorizar os sintomas precoces, mesmo que eles sejam atípicos, e encaminhá-las para uma avaliação”, diz a cardiologista.
Já do ponto de vista da população geral, conhecer mais sobre o problema e ter uma rotina de autocuidado é algo primordial, aponta Jatene.
“É importante que toda mulher de 35 a 40 anos procure um cardiologista e faça uma avaliação. Isso pode ajudar na detecção de um problema que ainda está escondido”, sugere.
A médica acredita que, quando o assunto é coração, o público feminino deve ter a mesma rotina de cuidados reservada à prevenção do câncer de mama — com exames periódicos quando há indicação e atenção aos possíveis sintomas de algo mais sério.
“As mulheres geralmente cuidam do marido, dos filhos, dos pais, dos colegas de trabalho, dos amigos… Mas elas dificilmente são cuidadas como deveriam”, conclui ela.
Fonte: https://g1.globo.com