Queda na vacinação pode ser mais grave que a Covid-19 para crianças, diz epidemiologista
Para ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, múltiplos fatores podem levar Brasil a se aproximar de outros países com números em baixa
Sem atingir as metas de vacinação, o país deve conviver em breve com um cenário mais grave do que a Covid-19 em crianças, com retorno de doenças capazes de atingir esse público com muito mais força e gravidade do que o novo coronavírus.
O alerta é da epidemiologista Carla Domingues, que ficou à frente da coordenação do Programa Nacional de Imunizações entre 2011 e julho do último ano.
“A Covid tem se mostrado uma doença que atinge menos as crianças, diferentemente das doenças evitáveis pela vacinação já presente no calendário”, disse.
“Se os pais acharem que não vão vacinar seus filhos porque eles estão protegidos em casa, estão enganados. Geralmente, quem leva as doenças para as crianças menores de dois anos são os pais e irmãos que saem para a rua”, afirmou, citando pesquisas que mostram esse cenário.
Ela lembrou que, mesmo com a pandemia, as salas de vacinação continuam abertas. “Os serviços estão preparados para fazer essa vacinação de forma segura.”
“Mais importante do que só se preocupar com a Covid, é se preocupar também com essas doenças que não existiam mais e podem voltar a existir e trazer mortes para crianças e sequelas que são irreversíveis, como cegueira, surdez e paralisia.”
Ela citou como exemplo o fato de que, em menos de dois anos com vacinação contra o sarampo abaixo da meta recomendada, a doença voltou a se estabelecer no país. “Hoje temos a doença sendo transmitida em 21 estados. Não podemos deixar que isso aconteça de novo.”
Dados mais recentes de 2019 analisados pela Folha, no entanto, mostram que é alto o risco de isso se repetir.
Pela primeira vez em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para nenhuma das principais vacinas indicadas a crianças de até um ano completo. Em geral, essa meta costuma variar entre 90% e 95%.
Os índices, porém, ficaram entre 69% (caso da pentavalente, que protege contra difteria, tétano e outras doenças) e 91,7% (caso da tríplice viral, contra sarampo, caxumba e coqueluche).
Para Domingues, o cenário mostra que o Brasil, de quedas pontuais, pode agora estar se aproximando da rota de outros países que vivem uma redução sustentada na adesão à imunização.
Também pode indicar um padrão mais forte de hesitação em vacinar, disse.
“Estamos vendo esse movimento de achar que não precisa mais tomar vacina, de acreditar em fake news, de achar que dá para levar [para vacinar] em um segundo momento e até esses grupos antivacina. Parece que temos um padrão mais forte que a gente não via antes no Brasil”, disse.
“Você tem a dificuldade do acesso, mas isso não se justificaria sozinho. Possivelmente temos um fator que vamos ter de enfrentar”, afirmou.
Ela apontou, no entanto, também outras hipóteses que devem ser analisadas. Segundo Domingues, casos de desabastecimento foram limitados a algumas vacinas —e, por isso, não explicam totalmente a queda.
“Por que vacinas que não tiveram desabastecimento historicamente também tiveram redução? Não me parece plausível que, pela falta da pentavalente, as mães não foram levar para nenhuma vacina”, disse.
Ela citou a diferença nos índices entre doses de vacinas que, em tese, seriam aplicadas ao mesmo tempo.
“Ou os profissionais de saúde não aplicam concomitantemente, seja porque a mãe tem medo, ou ele mesmo não quer fazer a criança sofrer, ou tem problema no sistema de notificação”, disse Domingues, que sugere que municípios verifiquem seus dados.
O problema, porém, não vem de agora. Os primeiros sinais de uma queda na vacinação começaram a ser registrados em 2015 e se agravaram em 2017, quando apenas uma vacina atingiu a meta indicada.
No ano seguinte, em meio a maior mobilização sobre o tema, a situação continuou grave, mas algumas vacinas tiveram leve recuperação.
Na tentativa de evitar nova queda nos índices, Domingues lembrou que o Ministério da Saúde chegou a fazer, no ano passado, um movimento chamado Vacina Brasil. Mas a medida não foi suficiente para alavancar as taxas de cobertura.
Na prática, os dados de 2019 mostram que, de nove vacinas, oito tiveram queda.
A situação pode piorar em meio à pandemia. Dados preliminares do PNI mostram que, de janeiro a julho, as taxas de cobertura vacinal ficaram entre 51% e 66%. “São dados estarrecedores”, disse ela, para quem faltou uma ação mais forte do governo em incentivar a manter a vacinação em dia.
“Ninguém falou que era para tomar vacina, que os postos de saúde estão abertos, que há todo um protocolo de segurança. Esse movimento deveria ter havido.”
Ela defende que sejam retomadas discussões de algumas medidas, como aumentar a exigência da carteirinha de vacinação nas escolas.
“Não se trata de uma obrigatoriedade para entrar na escola. Mas você pode criar uma condicionalidade. É uma forma de fazer com que a criança, adolescente ou adulto retorne ao serviço de saúde.”
A sugestão ocorre em um contexto em que, nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem feito controversas declarações de que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”.
Para Domingues, no entanto, a frase é contraditória. Primeiro, porque a vacina já obrigatória na legislação, afirmou. Em segundo lugar, porque desmobiliza a população.
A declaração é, segundo ela, em razão da defesa do governo de que haverá, em janeiro, uma vacina contra a Covid-19. Para a ex-coordenadora, o prazo não é plausível. “Se nenhum estudo terminou até hoje, não acredito que seja factível ter uma vacina antes de março.”
O melhor, defendeu, seria incentivar a população a manter medidas preventivas até que haja uma perspectiva sólida.
“A população tem de entender que todas as medidas que temos hoje de usar máscara e ter distanciamento ainda precisam ainda ser feitas. Mesmo que a vacinação comece em fevereiro, você não vai ter 80 milhões de doses no posto de saúde ao mesmo tempo.”